A vida que deveria ter sido e será
Marília Mendes
No próximo domingo, 19 de abril, será o dia do aniversário de Manuel Bandeira. Se vivo estivesse, seriam 134 primaveras. A deste ano, talvez, menos florida, devido ao isolamento social, necessário neste tempo de pandemia. Isto me fez refletir que o poeta é, daqueles que conheço, aquele que mais vivenciou tempos de isolamento, estado de espírito semelhante ao que nos encontramos. Tempos de reflexão, fragilidade, impotência, solidão e medo da morte. Fiquei pensando no que ele teria a nos dizer- e nos disse tanto- em crônicas e versos sobre a sua experiência.
Aos 18 anos de idade, Manuel Bandeira preparava-se em São Paulo para ser engenheiro na Escola Politécnica. Adoeceu do pulmão e se viu obrigado a abandonar os estudos. A tuberculose, naquela época, era como uma sentença de morte. Altamente contagiosa e sem cura. “Sobre isso nos fala em sua crônica: “Minha Adolescência”:” A moléstia não me chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimento, febrinha, um pouco de tosse, não: caiu sobre mim de supetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu. Durante meses fiquei entre a vida e a morte. Tive de abandonar para sempre os estudos”.
No belo poema, Testamento, Bandeira volta a tocar no assunto:
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai
Foi-se-me um dia a saúde…
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Daí começou a peregrinação de Bandeira por lugares de climas mais amenos e diversos tratamentos, recidivas que impunham o isolamento completo, sempre atormentado pelo medo da morte, a quem tantos nomes deu: Indesejada das Gentes, Iniludível, Dama Branca…
Com a tuberculose, sentindo-se condenado ao fim próximo, Bandeira foi surpreendido pelo irônico destino e teve que lidar, num intervalo de quatro anos, com a perda da mãe, da irmã que foi sua enfermeira desde o princípio, e também a do seu pai.
Por tratar dos temas da morte e da solidão em tantos dos seus poemas, aos mais desavisados poderia suscitar a ideia de ser ele amargurado e triste. Bandeira, no entanto, soube como ninguém, aproveitar os momentos de solidão para aprender a desenvolver suas potencialidades e profunda sensibilidade. Poeta, cronista, tradutor em vários idiomas, dramaturgo, crítico de arte, amante da música, sabia fazer amigos e poesia das coisas mais simples e singelas, sabia ver luminosidade na dor. Podemos ver este espírito no seu poema “Pneumotórax” quando o médico lhe dá a sentença:
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Ou ainda no “Porquinho da Índia”, que se passa quando poeta tinha seis anos e provavelmente vivia na casa de seus avós maternos, na Rua da União, hoje Espaço Pasárgada:
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .
— O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.
Mergulhar na obra de Bandeira é descobrir o alento na dor, a dialética do existir e a potência da arte a preencher os espaços vazios da existência.
Com versos do poema “A vida assim nos afeiçoa”, do seu primeiro livro, “A Cinza das Horas” ele nos diz:
A vida assim nos afeiçoa,
Prende. Antes fosse toda fel!
Que ao se mostrar às vezes boa,
Ela requinta em ser cruel…
Vai ainda adiante em “O Rio”, do livro “Belo Belo”:
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.
É, porém, no aclamado Vou-me embora pra Pasárgada, poema que Bandeira passou mais tempo para concluir, escrito num destes momentos de extrema solidão e desalento, que ele imprime a transcendência do existir e deixa para nós a força da imaginação, da memória dos afetos e da graça do viver.
É com este poema que brindo com o poeta, estrela da vida inteira, a vida que poderia ter sido e será.
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Marília Mendes, é gestora do Espaço Pasárgada