Por Oscar D’Ambrosio
Compreender as transformações que o mundo digital está a impor à sociedade contemporânea é uma obrigação. Um ótimo caminho é o filme francês “Vidas duplas”, de Olivier Assayas. Ao trabalhar com profissionais envolvidos em diversas esferas profissionais, oferece muitas pistas.
Um dos personagens é um editor de livros que não abre mão da qualidade, mas que contratou uma especialista para analisar as possibilidades de uma migração digital de seu conceituado catálogo. Ela, que se torna a sua amante, ilustra uma nova forma de ver o mundo, com soluções objetivas, bissexualidade e a concepção de que não se deve postergar respostas para um mundo que se alterou muito, ainda mais na forma de fazer e divulgar cultura.
A companheira do editor, interpretada por Juliette Binoche, cada vez mais a “cara” do cinema francês, é uma atriz que não suporta mais ser uma policial e gerenciadora de crises numa série para plataformas digitais. A renovação de seu contrato para cada temporada não é um prazer, mas um suplício, o que a leva a desistir para protagonizar, no teatro, a célebre peça “Fedra” de Racine, inclusive num papel mais próximo de sua idade.
O editor está ainda às voltas com um autor que tem como principal característica de suas obras partir sempre de experiências pessoais, o que envolve todas as pessoas ao seu redor, que acabam por se reconhecer nos romances. Surge então uma discussão num debate literário em uma livraria se os seus amigos e amantes não deveriam ter algum direito autoral sobre as suas trajetórias publicamente devassadas e devastadas.
Há ainda personagens secundários muito interessantes, como o escritor que utiliza o seu blog em ascensão para tentar catapultar as vendas em declínio de seus romances. E surge aí a discussão sobre quais serão as melhores maneiras de vender livros no futuro. Temos também uma assessora política, às voltas com um líder de esquerda, enclausurada no dilema do candidato de seguir os seus ideais ou de buscar agradar os caminhos da opinião política. E isso se agrava quando ele se envolve num escândalo sexual.
Enfim, poucas obras cinematográficas contemporâneas conseguem envolver tantas questões cruciais de uma maneira tão surpreendente, pois diálogos que começam aparentemente sem densidade vão se aprofundando aos poucos e, quando notamos, estamos discutindo o cotidiano de cada um de nós perante as transformações digitais.
Oscar D’Ambrosio é jornalista pela USP, mestre em Artes Visuais pela Unesp, graduado em Letras (Português e Inglês) e doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Gerente de Comunicação e Marketing da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo