É luta, é o artigo de José Ambrósio

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José Ambrósio é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras

É luta!

JOSÉ AMBRÓSIO*

Quando se está em isolamento social as horas parecem passar mais lentamente e essa sensação muitas vezes leva algumas pessoas ao desespero. Tic-tac, tic-tac. Com “mais tempo” desde a sexta-feira (20.03) voltei a exercitar uma antiga habilidade; tirei a poeira do velho cavalete e retomei a pintura. Óleo sobre tela. Acrílico seca rápido, enquanto óleo exige mais dedicação, observação, paciência e equilíbrio. Você pode levar horas e até dias entre algumas pinceladas para obter a harmonia e o efeito desejados.

Quando se está em quarentena (e se tem como seguir adequadamente as recomendações das autoridades médico-sanitárias) é muito importante se identificar aquilo que lhe proporciona serenidade e equilíbrio ante o tic-tac. Ouvir as musicas que você curte; ler e reler livros que lhe fizeram viajar pelo mundo e foram importantes para você se tornar quem você é; assistir a filmes; meditar; orar; cantar; dividir as tarefas diárias de um lar e até cochilar. Sim cochilar, e se for numa rede, não tem preço.

Essas coisas, mesmo se tornando rotineiras, são muito importantes para o dia a dia no isolamento, necessário para se conter o avanço da Covid-19, que já matou milhares de pessoas em vários países (quase 100 no Brasil) e se alastra pelo mundo deixando um rastro devastador.

Neste momento, 2,6 bilhões de pessoas estão em isolamento ou distanciamento social, ou seja, um terço da população mundial. Em todos os continentes e nas mais diversas e adversas condições. Os noticiários nos mostram isso diariamente, além, claro, dos gráficos que a cada dia revelam a letalidade do novo coronavírus.

Os noticiários também nos mostram o incansável e gigantesco esforço da ciência para vencer o vírus que é considerado o inimigo público número um pela Organização Mundial de Saúde (OMS). E a solidariedade que brota da compreensão da vulnerabilidade humana e se espalha a partir do sentimento de que todos precisam se ajudar. São muitos os exemplos dignos de aplausos mundo afora, assim como os estímulos à esperança, à certeza de que a quarentena logo cessará, desde que façamos a nossa parte nessa guerra.

Por falar em guerra, uma cena do filme “Amarga sinfonia de Auschwitz” nos ensina sobre a necessidade de se buscar o equilíbrio de que falo já no primeiro parágrafo. Submetida aos horrores do campo de concentração operado pelas tropas nazistas no sul da Polônia durante a 2ª Guerra Mundial, uma violinista judia de origem austríaca coordena com muito rigor uma orquestra feminina. E acaba recebendo o reconhecimento de uma musicista francesa também judia e também prisioneira de que a sua tenacidade salvou muitas vidas. “Agradeça à minha recusa em cair no desespero”, resume a maestrina da orquestra que era obrigada a se apresentar para os representantes de Hitler, entre eles Josef Menguele, o Anjo da Morte de Auschwitz.

Já o filme “A trincheira infinita”, baseado em fatos reais, conta a história das “toupeiras”, como ficaram conhecidos muitos que por lutarem contra os seguidores do general Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola (1936 a 1939), passaram até 30 anos escondidos em abrigos subterrâneos improvisados (muitos em suas próprias casas). É que, vitorioso, o general implantou uma ditadura que durou até o seu falecimento, em 1975. Higino, personagem principal do filme, não pode acompanhar a gestação da esposa, Rosa. Como vivia escondido após ter sido baleado em fuga, foi considerado morto. Assim, Rosa passou nove meses em casa de parentes, em outra cidade. Seu filho Jaime cresceu sem poder lhe chamar de pai. Para a comunidade, o menino era sobrinho de Rosa e de Higino. Nas duas vezes que ousou sair do isolamento (por imperiosa necessidade) ele foi perseguido ferozmente e até sob tiros pela Guarda Nacional do “generalíssimo” Franco. Higino e muitos outros sobreviveram a 360 meses ou cerca de 10 mil e oitocentos dias de real confinamento. E somente saíram das suas “tocas” antes do término da “Era Franco” em razão de uma anistia concedida pelo caudilho em 1969.

Eu sei que você pode ter mil razões para dar uma “saidinha”. Mas basta se ligar em uma só razão para refletir se precisa realmente sair de casa: a vida. A vida sua, da sua família, de vizinhos, amigos, da gente da sua comunidade, da sua cidade, do seu país, da humanidade. Acredite, não é pouca coisa.

Agindo assim você também estará respeitando o esforço e a dedicação da comunidade medico-cientifica, das pessoas que trabalham em atividades essenciais e daquelas que de fato não têm como evitar sair de casa pois precisam ganhar o sustento da família.

Neste momento (11h do sábado 28 de março), depois de contribuir nas tarefas do lar, estou diante de uma tela de 40cmx40cm ainda toda branquinha. Anexo tela que considero ter concluído há pouco, apesar de ainda faltar a assinatura (tempo de secagem). Um crepúsculo. Óleo sobre tela de 30cmx20cm. Um crepúsculo radiante e vibrante, da maneira como devemos enfrentar o dia a dia todas as horas do dia.

Simbora, gente. Afinal, como diz a assistente social e amiga Lourdinha Teles, é luta!

Candeias, 28 de março de 2020.

*José Ambrósio é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras

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