Recria tua vida, sempre
José Ambrósio
2.979 registros apenas em março, mês de início da quarentena em Pernambuco. Não, esse número espantoso não se refere aos casos do novo coronavírus, mas a uma chaga não menos assustadora e cujo enfrentamento não é menos urgente; a violência doméstica contra a mulher.
Significa que em pleno mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, pelo menos 96 mulheres foram vítimas de violência doméstica a cada dia no estado, ou quatro casos a cada hora.
No período, 126 estupros foram registrados e 12 mulheres tombaram assassinadas, sendo que um terço dos homicídios (quatro) caracterizaram-se como feminicídios (quando o homem mata a mulher apenas por ela ser mulher).
Os números constam de balanço divulgado pela Secretaria de Defesa Social (SDS) nesta quarta-feira (15). De acordo com o levantamento estatístico, se comparado com o mesmo mês do ano passado, houve menos casos de violência de gênero.
A violência doméstica diminuiu 22,18% (foram 3.838 casos no terceiro mês de 2019 e 2.979 no mês passado). Os homicídios caíram de 20, em março de 2019, para 12 em março deste ano, com quatro feminicídios, mesmo número de 2019. Os casos de estupro caíram pela metade, passando de 234 em março do ano passado para 126 em março deste ano.
Mesmo sem comemorar (coerentemente) a responsável pelo Departamento da Mulher da Polícia Civil de Pernambuco (DPMul), delegada Julieta Japiassu, ressalta o trabalho desenvolvido pela rede de proteção à mulher. “Houve um planejamento que antecedeu o isolamento social. Sabíamos que o confinamento e o maior convívio com companheiros e familiares poderiam agravar conflitos e agressões. Pensando nisso, fortalecemos o trabalho de monitoramento das mulheres com medidas protetivas, visitas e acompanhamentos por meio da patrulha Maria da Penha da Polícia Militar de Pernambuco”, declarou Japiassu à imprensa.
Importante se observar que a quarentena começou no dia 21 de março. Além disso, agentes públicos e pessoas ligadas a entidades que operam com a defesa dos direitos da mulher chamam a atenção para a subnotificação dos casos, principalmente no interior, onde a rede de proteção é menor. Também por medo e por vergonha elas deixam de denunciar as agressões. A quarentena pode, inclusive, inibir a denúncia em razão da presença do agressor em casa. A mulher pode ainda se enquadrar em algum grupo de risco e assim evitar sair de casa, como recomendam as autoridades.
Assim, a delegada recomenda vigilância constante não apenas
por parte de profissionais da área, mas de amigos, vizinhos e todos aqueles que, de alguma forma, tomam conhecimento do sofrimento de mulheres nas mãos de agressores.
O alerta da advogada Gabriela de Souza, do escritório Advocacia para Mulheres, de Porto Alegre (RS), tem o mesmo tom: “A violência contra a mulher já era uma epidemia antes do coronavírus. Agora, será potencializada. A gente precisa tentar proteger as vítimas ao máximo, e não fingir que não vê”, ressalta. “Nos últimos dias, recebi mais pedidos de ajuda por ameaças de morte do que havia recebido em meses”, reforça em entrevista à Universa do dia 27.03.2020.
Gabriela explica que os fatores que levam ao aumento de violência são o maior tempo de convivência e a sobrecarga de estresse em um momento de insegurança, como o que vivemos, fazendo com que a tensão se intensifique.
Estudos de órgãos internacionais de proteção à mulher, como a ONU Mulheres, indicam que no Brasil o número de casos pode ter, em alguns meses, um aumento igual ao que foi registrado em anos. Não devemos nos esquecer que o Brasil é o 5º país onde mais se mata mulheres no mundo.
De todo modo, os resultados de março em Pernambuco são alentadores. Vamos completar um mês de quarentena na próxima terça-feira (21.04). Nesse período tivemos a Semana Santa. Além de seguir a ciência e a sensatez ficando em casa para conter a velocidade da contaminação pela covid-19, façamos a nossa parte também na contenção do gráfico da violência contra as mulheres denunciando e até intervindo em casos que cheguem ao nosso conhecimento, como apela a advogada gaúcha.
Para as pernambucanas que vêm sofrendo violência doméstica, uma frase de sabedoria, resiliência e esperança da poetisa Cora Coralina (Goiás 1889-Goiânia 1985): “Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça”.
Candeias, 18 de abril de 2020.
*José Ambrósio é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras