
Meus três anos em Tóquio: trabalho, “estranhamentos” e diversão
Bruna Siqueira Campos
Sempre que menciono ter morado no Japão, sou alvo da curiosidade natural das pessoas. Principalmente quando digo que trabalhei como repórter, mesmo sem saber interagir – satisfatoriamente – em japonês. Ter vivido em Tóquio, trabalhando como jornalista em uma publicação brasileira voltada para imigrantes, foi uma das coisas mais pitorescas que fiz, de fato, em mais de 15 anos de carreira como jornalista. E embora vivesse rodeada de outros estrangeiros, a maior parte deles brasileiros, peruanos e filipinos, passei pelos estranhamentos naturais que qualquer um passa quando se depara com outra cultura.

Cheguei de mala e cuia na Ásia um bom tempo atrás, em 2007. O mundo, logo depois, enfrentaria a devastadora crise do subprime (quem não lembra da emblemática quebra do banco Lehman Brothers?). Como era de se esperar, ser jornalista da área de economia em um país quase 100% automatizado e exportador de produtos de alto valor agregado me rendeu inúmeros pedidos de matéria dos portais em português.
Enquanto isso, levava minha vida na redação do IPC World, editando um tablóide semanal cuja equipe parecia a Embaixada do Brasil: tinha gente do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Minas Gerais. Quando me irritava com algo e me danava a falar pernambuquês, era uma frustração: a única pernambucana que trabalhava conosco mudou-se algum tempo depois para a Nova Zelândia, e ninguém mais me entendia. Era tanto pedido de explicação e legenda que eu preferia deixar quieto.
Entre as diferenças no ritmo de trabalho, lembro de alguns fatos em especial. Logo que havia chegado, uma vez perguntei a um colega sobre a logística para fazer o trabalho. Se tínhamos motorista, como pegávamos os carros da redação etc. – Você sabe aquele trem que você pegou para vir até aqui, o JR? – me perguntou. Eu, inocente, respondi que sim. – Pois bem, é ele mesmo que você vai usar pra ir para as suas pautas.
Claro que foi um belo “se vira” e, como todo a gente se acostuma a tudo, não demorou para que eu estivesse desbravando as estações da Grande Tóquio como se fosse uma verdadeira “local”. Depois da capital japonesa, nem preciso dizer que andar por São Paulo nas minhas rápidas visitas à megalópole brasileira virou fichinha.
O rigor japonês no cumprimento de horários também não é novidade. E isso sempre foi um choque cultural e um empecilho para o trabalho. Lembro de ter esperado mais de 4h por uma entrevista de Jorge Ben Jor, que estava fazendo tour pela cidade e pouquíssimo preocupado com sua agenda.
Outra vez, senti vergonha alheia pelo presidente do BNDES, que na época era o economista Luciano Coutinho. Aguardava pacientemente para entrevistá-lo, juntamente com repórteres japoneses da mídia especializada, quando vi um por um deixar o escritório da Embaixada, onde estávamos belamente sentados e tomando chá de cadeira. A cara de indignação de todos era a mesma: sentiam-se desrespeitados. Claro que a coletiva, marcada pela assessoria do BNDES, virou uma entrevista exclusiva comigo. Como repórter brasileira, não poderia me dar ao luxo de fazer o mesmo – mas vontade não faltou, confesso.
A naturalidade com a qual a imprensa de internet tratava os suicídios, super comuns no país, também foi marcante durante minha jornada por lá. Os casos de gente se jogando na linha do trem eram tão corriqueiros que as matérias sempre falavam dos atrasos nas linhas mais utilizadas do transporte público, e não sobre o fato em si. Se você usava a Yamanote Line, que é a linha circular de Tóquio, deveria se precaver para um atraso de X minutos porque uma pessoa do gênero e idade tal havia se suicidado na estação Y. Algo mais ou menos assim, banalizado mesmo. E, claro, tive o desprazer de estar em um vagão quando mais uma pessoa resolveu acabar com a vida usando o transporte público.
Cobri alguns shows, exposições e festivais, muita tour de artistas brasileiros pela Ásia. Certa vez, conferia o show de Maria Rita num teatro quando, acompanhada de sua produtora – que eu conhecia do Recife e era uma colega jornalista de muito tempo, Ana Paula Veríssimo -, fomos convidadas a sentar. Não poderia ficar de pé para dançar, embora estivéssemos em uma área dos acessos laterais, sem atrapalhar qualquer pessoa ou fazer barulho.
Os seguranças começaram a nos coagir (às vezes eu usava da artimanha de dizer que não falava japonês, para escapar de situações chatas, mas dessa vez não colou) e, vendo aquele princípio de confusão com um jornalista e gente da equipe, a própria Maria Rita interveio: convidou todo mundo a se levantar e dançar junto. A filha de Elis divulgava aquele álbum “Samba Meu” e não tinha muito sentido as pessoas ficarem imóveis nas cadeiras. Fomos salvas pelo gongo e pela “flexibilidade” brasileira – tá, odeio dizer “jeitinho”.
Uma das coisas bizarras daquela época foi ser chamada a atenção, por um colega da reportagem, por ter colocado uma foto-legenda da Família Imperial numa rabeira de página, enquanto editava o jornal com o diagramador. A pessoa que estava por lá há mais tempo do que eu argumentara que, por respeito, a foto deveria ocupar um lugar melhor. Mesmo que a notícia fosse de baixa relevância.
Receber e ciceronear apresentadores globais e atores de novela durante reportagens em Tóquio – Serginho Groisman, Zeca Camargo, André Marques, Paulo Betti, dentre outros – foi outra coisa legal que fiz naquela época. A empresa onde trabalhei por quase três anos era afiliada da Globo Internacional, logo, recebíamos todo mundo que vinha do Brasil fazer matéria na Ásia. Uma vez saí para fazer compras com Zeca Camargo (gente finíssima, aliás), no bairro elegantérrimo de Omotesando, uma espécie de reduto “Quinta Avenida” da capital japonesa. Entrei em algumas lojas com ele, acompanhados de um cinegrafista da empresa, e confesso que me identifiquei ao perceber a cara de decepção dele ao ver que nada tinha seu tamanho. Os japoneses são muito mignons, né, gente…
Zeca também se surpreendeu comigo, quando paramos para comer sushi num kaitenzushi qualquer (aqueles restôs japas onde as esteiras rolantes vão levando os pratinhos, sabe?). Ele ficou de cara porque eu não topava comer qualquer peixe. Sushi de enguia, por exemplo, demorei mais de um ano pra provar. É gostoso, considerado uma iguaria do verão. Já ele, corajoso e curioso, provou coisas que eu não tive coragem em anos de “japonices”.
As lembranças daquela época são inúmeras, muitas tentei imortalizar escrevendo pra um blog no jornal O Globo, o Panorama Nihon – que, infelizmente, foi retirado do ar anos depois, pois não tinha sentido deixá-lo sem atualização lá no portal. Por desleixo, também perdi minhas memórias e às vezes encontro um texto ou outro repostado na blogosfera.
Mas uma das coisas que carrego como bastante positivas foi a extensa rede que nutri e construí naquele tempo. Todo mundo que ia pra Tóquio, principalmente jornalistas, sentia-se à vontade para entrar em contato comigo, pedir dicas etc. Algumas dessas pessoas ganharam tour pela cidade com direito a um chope no final, claro. Pois tem coisa mais prazerosa do que receber bem?
Num desses “Brunatour”, lembro que eu e meu marido fomos convidados a encontrar uma antiga fonte dos tempos de reportagem no Recife, em um hotel chique da cidade, que ficava próximo ao Palácio Imperial. O convite partiu de um empresário conhecido de Pernambuco, que viajava com a esposa e um casal de amigos. Tudo muito parado, engessado, até que lancei a pergunta: “Vocês querem realmente conhecer Tóquio?”.
Movidos pela curiosidade, eles toparam, e saímos daquele ambiente engomadinho para cair, diretamente, numa área perpetrada por izakayas. Para quem não conhece o termo, são os bares típicos japoneses, bem pequenos, que servem petiscos e geralmente atraem as pessoas que estão saindo do trabalho e vão dar uma esticadinha, ou seja, os “salarymen”.
O barzinho onde entramos ficava embaixo de uma linha de trem qualquer das proximidades. Um inferninho barulhento, à meia luz, com gente brindando festivamente, muito chope e saquê rolando nas mesas e iguarias como carpaccio de carne de cavalo no cardápio. Pela cara de estranhamento das esposas e de satisfação dos maridos, tenho certeza que a experiência foi incrível e inesquecível. Hahaha!
Tóquio, hoje, é uma lembrança distante, virou um capítulo especial na minha estrada. Foram tantas coisas vividas por lá que certamente dariam um livro, mas prometo – por ora – que não irei me estender mais do que já fiz. E você, que tipo de curiosidade tem pela Terra do Sol Nascente que ainda não puderam te explicar? Me conta aí, quem sabe não rola um post novo?
Bruna Siqueira Campos – jornalista / Comunicação empresarial e Relações Governamentais / Escritora freelancer